O medo de sentir medo
E eis que chegamos hoje à marca dos quarenta e cinco dias de confinamento, de isolamento social, situação que se faz necessária, mas que vai se tornando mais difícil, uma vez que vai nos fragilizando, nos tornando mais sensíveis. O medo ou até mesmo o pavor vai se tornando mais forte, mais perceptível. Ligar a TV ou olhar os boletins diários nos causa temor e até tremor por dentro, quando vemos a curva subindo, as mortes aumentando, hospitais chegando ao limite, e assim por diante.
Confesso que cheguei a um momento em que tenho medo até de sentir medo. Sim, sei que o medo é inerente às criaturas, que é uma alternativa de autodefesa, mas sei também que muitas vezes ele nos paralisa, nos enfraquece. É justamente esse tipo de medo que temo sentir. Vou explicar o porquê.
Você, caro leitor, já se encontrou em alguma situação na qual o medo te deixou imóvel, te fez perder a capacidade de tirar os pés do chão e dar um passo à frente? Eu já e foi terrível. Contando, após o ocorrido, ainda hoje dou risadas revendo na mente a situação constrangedora. Era mês de março, muita chuva no sertão após uma sequência de anos de seca e o açude da nossa cidade estava recebendo um grande volume de água, fazendo com que as suas margens avançassem cobrindo as plantações, as chamadas vazantes. Por conta disso, todos os dias tínhamos que ir até a nossa "vazante" para colher frutos ou o feijão já maduro para não ser submergido na água. Dentre as frutas minha família cultivava melancia, melão e pepino (não esse pepino de saladas, um pepino que no sertão se come amassado com açúcar ou ao natural mesmo, depende do gosto).
Uma tarde de sábado, após um dia quase inteiro de chuvas, minha mãe me convida para ir com ela buscar o feijão para o almoço do domingo e as frutas que estivessem correndo o risco de serem encobertas pelas águas durante a noite. Saímos numa alegria grande. Eu, menina de uns dez anos, saltitando em meio às poças d'água da chuva, balançando as árvores para tomar aquele banho com a água que caia das folhas. Um receio de que caísse alguma lagarta, bichinho que me causava nojo e pavor ao mesmo tempo. Chegamos às margens do açude onde havia a plantação da nossa família. Colhemos bastante feijão, umas duas melancias madurinhas e um melão daqueles que a gente sente vontade de comer com os olhos, tão bela estava a aparência. Minha mãe entregou-me o melão, pois era mais difícil de acomodar no "bisaco" (um pano amarrado nas quatro pontas formando um cesto de colheita).
Já estávamos voltando, minha mãe cantarolando hinos religiosos, expressando gratidão por tantas bênçãos trazidas pelas chuvas abundantes. Naquela tarde, além da alegria por estar ali, vivendo aquele momento maravilhoso com a minha mãe, só nós duas, coisa que era raro numa família de nove filhos. Ter a mãe só pra gente, sem dividir com mais ninguém, quem não adorava esses momentos quando criança? Naquela tarde, tinha outro motivo para a minha alegria, eu ganhara uma sandália nova, chinelo, como nós chamamos no interior. Meu pai trouxera da na feira. Era a primeira vez que saia calçada com ela e, para não sujar na lama do caminho, eu a levava nas mãos, andando descalça o tempo todo. Mas, eis que numa pequena curva do caminho, onde havia um pequeno riacho, aquele momento mágico se transformara em terror. Justamente na curva, onde a gente adorava lavar os pés naquela água corrente, minha mãe para e levanta a mão para que eu parasse e não me movimentasse ou fizesse barulho. Algo estranho. Minha mãe silenciou, esticou a cabeça, observou e deu um leve grito, fazendo um movimento de arrepio. Fui ficando apavorada. Perguntei-lhe o que era. Ela, tentando esconder que estava com medo, hoje sou mãe e sei bem o que é isso, fingir-se corajosa nas adversidades, disse: "vem devagar, sem fazer barulho e olha que coisa linda que tem aqui". Fui sem hesitar. Ao me aproximar, vi, me apavorei, pulei, gritei, mas não conseguia sair do lugar.
Estava ali, estirada no meio do nosso caminho, uma enorme jiboia, que olhava para a minha mãe, parada diante dela, e fazia aquele gesto inerente às cobras, colocar a língua para fora. Nossa, eu perdi o melão que tinha nas mãos, um dos chinelos novos, pulando dento do capinzal. A mamãe pedira para que eu fosse até um campinho de pelada onde os meus irmãos e primos estavam jogando para chamá-los enquanto ela permanecia ali, prendendo a atenção da cobra. Eu corria em círculos, aliás, pulava, e cada pisada no mato sentia inflar algo embaixo dos meus pés. Parecia que em cada lugar que eu plantava o pé havia uma cobra daquela. Encurtando a história, foi tanto grito que a vizinhança ouviu, alguém foi até onde os meus irmãos estavam e de repente, sem que eu saísse do lugar, chegaram todos e o problema foi resolvido. Mas ficou daquele momento vivido um saldo não muito bom. Só ao chegar em casa percebi-me sem meus chinelos novos e sem o melão que trazia nas mãos. Tomei uns carões, é claro, pelo alarde que fiz. Mas o pior mesmo foi a fofoca que começou. Todo mundo contava essa história e ia aumentando um pouquinho para me deixar ainda mais envergonhada. Minha mãe passou semanas de vez em quando tendo crises de riso do nada, sempre que lembrava a cena patética.
Bem, hoje eu também rio e rio muito lembrando dessa história. Mas o fato é que assim como naquele dia, estamos vivendo uma situação de medo e pavor semelhante, que vez por outra nos quer paralisar. Após essa vivência, lembro-me de que passei a sempre que tinha sonhos em situações de perigo, sentir meus pés travados sem conseguirem andar. Já sonhei com cães ferozes me mordendo, simplesmente porque no sonho, não conseguia sair do lugar. Já sonhei com assaltos na minha residência e, da mesma forma, não conseguia me mover para fechar a porta ou ligar para a polícia. Me pergunto se esses sonhos têm relação com aquela vivência traumática e se essas lembranças podem afetar-me também numa situação real, como agora. Esse foi justamente o motivo de escrever essa crônica. Tentar voltar a essa situação, perceber que o drama maior foi no imaginário e tentar me libertar desse possível trauma, protegendo-me e fortalecendo-me para vivenciar tudo o que ainda está por vir.
Confesso que vivo tentando mandar mensagens positivas para o meu cérebro. Mas me assusto se minha filha dá um espirro, se meu esposo tosse, se minha garganta começa a ficar irritada. Temo que esse medo possa ir me fragilizando, pois não posso deixar o medo me paralisar. Naquela cena minha mãe escondera de mim o medo que deveras sentia, ela mesma confessou depois que estava apavorada, mas precisava pensar em mim, me tranquilizar, coisa que não conseguira, mas foi necessário. Hoje a mãe sou eu e minha pequena precisa ter em mim uma presença que a ajude a passar por todo esse momento da forma mais amena possível. Reafirmo que está difícil, mas parece que a maternidade nos faz ser uma espécie de "fingidoras" como descreve Pessoa a respeito dos poetas. Parece que a gente chega a "fingir que é coragem, o medo que deveras sentimos". E continuo dizendo: estou com medo de sentir medo. De sentir medo quando tudo isso passar e tiver que voltar a trabalhar. De continuar a sentir medo de me aproximar ou tocar em alguém. De mandar minha filha de volta para a escola. De não mandar. De participar de uma reunião em um ambiente fechado. Tudo, absolutamente tudo hoje nos assusta em termos de futuro. Dizem os estudiosos que o futuro e construído no passado e no presente.